11 de outubro de 2012


Come Back


PARTE I
Ela pegou apenas seis peças de roupa e saiu silenciosa para que ninguém acordasse. Ele a esperava no portão vestido na sua melhor blusa listrada e jeans rasgado, os olhos por de trás dos óculos e a barba mal feita escondendo os traços da boca fina e úmida.
Ela surgiu no alpendre e, embora na penumbra, ele pode ver seus olhos castanhos avermelhados contornados pelo preto borrado do lápis. Disfarçou a leve curva em seus lábios e estendeu os braços para que ela se jogasse nos mesmos. Ficaram ali parados por alguns segundos, apenas sentindo os corpos um do outro, abraçados no silencio escuro dos postes de luzes queimadas.
Finalmente olharam um para o outro, ela com a visão nublada de sono e ele com a visão nublada pelos borrões que a pele dela tinha causado nos óculos. Tirou-os do rosto e tocou os lábios dela com os seus suavemente, sentiu que os lábios dela curvaram-se em um doce sorriso e ela os separou dizendo “eu te amo” baixinho, abraçou-a mais forte e ao ver a luz da casa acender-se a puxou para a fachada ao lado.
- Você quer ir agora? – foram as primeiras palavras que ele disse a voz rouca e destoada.
- Para onde vamos? – sussurrou tremula pelo frio.
- Podemos ficar na estação até as oito que é quando saí o primeiro trem.
- Eu acho que eles vão dar falta de mim até lá.
- Podemos roubar um carro.
- Você sabe dirigir?
- Eu roubo você dirige.
- Não sei dirigir.
- Não sei roubar.
Nenhum carro na rua. Andaram até as seis e vinte e quatro, sentaram no meio fio em frente a uma casa de madeira e esperaram um senhor de sessenta e oito anos tirar da garagem o Opala 67 preto. Ele abriu a porta do carro e arrancou o velho de dentro, cobriu-lhe os olhos enquanto ela entrava no carro, não fez diferença alguma posteriormente, mas foi algo simbólico, entrou no carro e partiram. 

PARTE II
- Nunca dirigi. – o carro morria a cada esquina.
- Eu sei, mas você está indo bem. – mentiu agarrado ao banco de olhos arregalados.
Continuou deixando que o carro morresse a cada esquina, ria da situação enquanto ele tentava passar algum conforto moral, ria de nervoso e ria porque não sabia se deveria mesmo fugir dali, mas queria muito.
 Finalmente a estrada, o deserto em ambos os lados, a vegetação escassa.
- Welcome to L.A. baby! – ela sorriu como se fosse uma realidade.
- Gosto da sua realidade inventada.
Dirigiu como se fizesse aquilo há anos de repente, ele havia se tranquilizado com a solidão da estrada, colocou os óculos escuros, abriu uma cerveja para bebericar e ligou o toca-fitas.
- Caralho, o velho tem bom gosto! – surpreendeu-se ao ver as fitas no porta-luvas e ao ouvir The Doors tocar.
- Gosto desse carro.
- Gosto dessa ideia de vida. – pensou se ela também gostaria, mas o silencio ecoou no carro juntamente com a música.
Ambos tentavam dizer algo, mas não conseguiam falar, era tarde, provavelmente umas três e quarenta da tarde e desde que ele havia dito aquilo, nada mais tinha sido proferido por cinco horas. Ele a observava vez em quando para analisar minuciosamente as feições que se formavam em seu rosto, o cabelo preto esvoaçante sobre a pele levemente amorenada, o óculos escuro escondendo os olhos castanhos, a boca sendo retorcida e mordida pelos dentes amarelados pelo café que insistia em beber todos os dias.

PARTE III

- Talvez não tenha sido a coisa certa a se fazer. – pronunciou-se depois de horas de silencio.
- Huh? – despertou do cochilo por de trás do óculo escuro.
- Você sabe... Fugir.
- O que tem?
- Não foi uma boa ideia. – estacionou.
- Quer voltar?
- Não posso.
- Porque não?
- Por você. – abaixou a cabeça.
- Se não fosse por mim você voltaria?
- Não quero voltar.
- O que você tem afinal? – sentiu um nó trancar a garganta, não conseguia entender o que ela queria dizer com aquilo.
- Esquece! – deu a partida e acelerou cento e dez, cento e vinte.
- Porque você nunca pode terminar uma conversa comigo?
Ela não respondeu, até tentou, mas não havia uma resposta que ela conseguisse dizer, talvez fosse por amá-lo demais. Ele guardou o ódio e a dor que percorriam em seu corpo naquele momento, não queria voltar, não agora no começo da viagem, mas porque continuar se ela parecia não querer continuar?

PARTE IV

A velocidade foi diminuindo até o carro parar no acostamento da estrada deserta. Não fazia muito tempo que haviam discutido, mas um enorme manto negro agora cobria o céu e ali apenas eles dois iluminados pela bela lua crescente.
- O que fazemos?
- Voltamos. – disse ele com aquele pensamento ainda ecoando em sua mente.
- Lembra... – saiu do banco do motorista e o rodeou-o com as pernas sentando sobre seu colo. – quando... – beijou seu pescoço e o sentiu arrepiar – nos conhecemos? – beijou seus lábios.
- Como eu poderia esquecer. – disse segurando o queixo dela e olhando-a firme nos olhos. – Você usava uma camiseta grande, um short curto e um all star vermelho. Você andava pelos meios-fios, toda desajeitada e boba, eu não tirava os olhos de você, tão bela. – sorriu nostálgico.
- We can live like Jack and Sally if we want. – um rubor tomou seu rosto por conta de cantar aquele verso. – Lembra?
- Não posso esquecer nada que acontece entre nós.
- E se tudo fosse apenas um sonho?
- Eu ainda te amaria ao acordar.
O silencio encheu o carro outra vez, os dois tocaram as testas e observaram a brincadeira involuntária de suas mãos.
- Se tudo for um sonho, promete nunca deixa de me sonhar?
- Eu nunca vou deixar de te amar.

PARTE V

O sol entrou pela janela do Opala 67 preto estacionado na beira da estrada que cortava o imenso deserto. Ela colocou os óculos escuros, se ajeitou no banco, pegou uma fita no porta-luvas, tomou um gole da cerveja quente. Sorriu nostálgica ao ouvir Indian Summer, lembrou-se de quão bonito era vê-lo olha-la e cantar desajeitado e tímido. Desceu do carro, acendeu um cigarro e observou as nuvens passearem pelo céu azul, a longa estrada da volta. Deu a partida e fez a volta.
- Goodbye L.A. – apertou o pé no acelerador, sentiu o carro deslizar pela estrada quente.
As músicas tocavam enquanto a paisagem seguia sempre a mesma, lembrava-se do passado que não existiu e as promessas que não foram cumpridas, os óculos escuros escondiam a dor que escorria de seus olhos.
Estacionou na pequena lanchonete com ar texano, os lábios secos, o rosto pálido, a vida doendo em sua pele quente. Refrescou-se na pia do banheiro, maquiou a face, contornou os olhos com o preto de costume jurando não o borrar com lágrimas, pintou também os lábios em vermelho ardente, prometeu não deixar mais nada doer, por mais que naquele segundo tudo doesse por inteiro em seu corpo. Voltou para o carro.

PARTE VI

A estrada longa sumindo no infinito, um vazio imenso no deserto, mas não dentro dela. A cabeça a toda em sincronia com o coração, pensamentos soltos, lembranças voando por dentro do carro. Como quando ele desceu do carro e disse que não iria mais seguir viagem, não aguentava, era demais para ele, não compartilharia daquele medo, daquela necessidade de fugir da realidade. E quando disse que gostava de sua realidade inventada, que a amaria para sempre mesmo que tudo não passasse de um sonho.
Sabia que mais dia ou menos dia ele desistiria, sabia que aguentaria, seguiria sem ele, mas não queria, pois o amava, ela o amava. Mas gritou enquanto ele caminhava pelo acostamento:
- Eu vou seguir em frente com ou sem você!
A pergunta ficou no ar durante dois ou três meses: Se seguiu em frente, porque ainda olhava tanto para traz?
Ali, diante aquele momento sublime ao ver a cidade ela conseguiu responder: Nunca seguiu em frente, apenas fugiu, voltar era seguir em frente. Ela estava voltando.





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