PARTE I
Ela
pegou apenas seis peças de roupa e saiu silenciosa para que ninguém acordasse.
Ele a esperava no portão vestido na sua melhor blusa listrada e jeans rasgado,
os olhos por de trás dos óculos e a barba mal feita escondendo os traços da
boca fina e úmida.
Ela
surgiu no alpendre e, embora na penumbra, ele pode ver seus olhos castanhos
avermelhados contornados pelo preto borrado do lápis. Disfarçou a leve curva em
seus lábios e estendeu os braços para que ela se jogasse nos mesmos. Ficaram
ali parados por alguns segundos, apenas sentindo os corpos um do outro,
abraçados no silencio escuro dos postes de luzes queimadas.
Finalmente
olharam um para o outro, ela com a visão nublada de sono e ele com a visão
nublada pelos borrões que a pele dela tinha causado nos óculos. Tirou-os do
rosto e tocou os lábios dela com os seus suavemente, sentiu que os lábios dela
curvaram-se em um doce sorriso e ela os separou dizendo “eu te amo” baixinho,
abraçou-a mais forte e ao ver a luz da casa acender-se a puxou para a fachada
ao lado.
- Você
quer ir agora? – foram as primeiras palavras que ele disse a voz rouca e
destoada.
- Para
onde vamos? – sussurrou tremula pelo frio.
-
Podemos ficar na estação até as oito que é quando saí o primeiro trem.
- Eu
acho que eles vão dar falta de mim até lá.
-
Podemos roubar um carro.
- Você
sabe dirigir?
- Eu
roubo você dirige.
- Não
sei dirigir.
- Não
sei roubar.
Nenhum carro na rua. Andaram até as seis e vinte e quatro,
sentaram no meio fio em frente a uma casa de madeira e esperaram um senhor de
sessenta e oito anos tirar da garagem o Opala 67 preto. Ele abriu a porta do
carro e arrancou o velho de dentro, cobriu-lhe os olhos enquanto ela entrava no
carro, não fez diferença alguma posteriormente, mas foi algo simbólico, entrou
no carro e partiram.
PARTE II
- Nunca
dirigi. – o carro morria a cada esquina.
- Eu
sei, mas você está indo bem. – mentiu agarrado ao banco de olhos arregalados.
Continuou
deixando que o carro morresse a cada esquina, ria da situação enquanto ele
tentava passar algum conforto moral, ria de nervoso e ria porque não sabia se
deveria mesmo fugir dali, mas queria muito.
Finalmente a estrada, o deserto em ambos os
lados, a vegetação escassa.
- Welcome to L.A. baby! – ela sorriu como
se fosse uma realidade.
- Gosto
da sua realidade inventada.
Dirigiu
como se fizesse aquilo há anos de repente, ele havia se tranquilizado com a
solidão da estrada, colocou os óculos escuros, abriu uma cerveja para bebericar
e ligou o toca-fitas.
-
Caralho, o velho tem bom gosto! – surpreendeu-se ao ver as fitas no porta-luvas
e ao ouvir The Doors tocar.
- Gosto
desse carro.
- Gosto
dessa ideia de vida. – pensou se ela também gostaria, mas o silencio ecoou no
carro juntamente com a música.
Ambos tentavam dizer algo, mas não conseguiam falar, era
tarde, provavelmente umas três e quarenta da tarde e desde que ele havia dito
aquilo, nada mais tinha sido proferido por cinco horas. Ele a observava vez em
quando para analisar minuciosamente as feições que se formavam em seu rosto, o
cabelo preto esvoaçante sobre a pele levemente amorenada, o óculos escuro
escondendo os olhos castanhos, a boca sendo retorcida e mordida pelos dentes
amarelados pelo café que insistia em beber todos os dias.
PARTE III
- Talvez
não tenha sido a coisa certa a se fazer. – pronunciou-se depois de horas de
silencio.
- Huh?
– despertou do cochilo por de trás do óculo escuro.
- Você sabe...
Fugir.
- O que
tem?
- Não
foi uma boa ideia. – estacionou.
- Quer
voltar?
- Não
posso.
- Porque
não?
- Por
você. – abaixou a cabeça.
- Se
não fosse por mim você voltaria?
- Não
quero voltar.
- O que
você tem afinal? – sentiu um nó trancar a garganta, não conseguia entender o
que ela queria dizer com aquilo.
-
Esquece! – deu a partida e acelerou cento e dez, cento e vinte.
-
Porque você nunca pode terminar uma conversa comigo?
Ela não
respondeu, até tentou, mas não havia uma resposta que ela conseguisse dizer,
talvez fosse por amá-lo demais. Ele guardou o ódio e a dor que percorriam em seu
corpo naquele momento, não queria voltar, não agora no começo da viagem, mas
porque continuar se ela parecia não querer continuar?
PARTE IV
A
velocidade foi diminuindo até o carro parar no acostamento da estrada deserta.
Não fazia muito tempo que haviam discutido, mas um enorme manto negro agora
cobria o céu e ali apenas eles dois iluminados pela bela lua crescente.
- O que
fazemos?
-
Voltamos. – disse ele com aquele pensamento ainda ecoando em sua mente.
-
Lembra... – saiu do banco do motorista e o rodeou-o com as pernas sentando
sobre seu colo. – quando... – beijou seu pescoço e o sentiu arrepiar – nos
conhecemos? – beijou seus lábios.
- Como
eu poderia esquecer. – disse segurando o queixo dela e olhando-a firme nos
olhos. – Você usava uma camiseta grande, um short curto e um all star vermelho.
Você andava pelos meios-fios, toda desajeitada e boba, eu não tirava os olhos
de você, tão bela. – sorriu nostálgico.
- We can live like Jack and Sally if we want.
– um rubor tomou seu rosto por conta de cantar aquele verso. – Lembra?
- Não
posso esquecer nada que acontece entre nós.
- E se
tudo fosse apenas um sonho?
- Eu
ainda te amaria ao acordar.
O
silencio encheu o carro outra vez, os dois tocaram as testas e observaram a
brincadeira involuntária de suas mãos.
- Se
tudo for um sonho, promete nunca deixa de me sonhar?
- Eu
nunca vou deixar de te amar.
PARTE V
O sol
entrou pela janela do Opala 67 preto estacionado na beira da estrada que
cortava o imenso deserto. Ela colocou os óculos escuros, se ajeitou no banco,
pegou uma fita no porta-luvas, tomou um gole da cerveja quente. Sorriu
nostálgica ao ouvir Indian Summer, lembrou-se de quão bonito era vê-lo olha-la
e cantar desajeitado e tímido. Desceu do carro, acendeu um cigarro e observou
as nuvens passearem pelo céu azul, a longa estrada da volta. Deu a partida e
fez a volta.
- Goodbye L.A. – apertou o pé no
acelerador, sentiu o carro deslizar pela estrada quente.
As
músicas tocavam enquanto a paisagem seguia sempre a mesma, lembrava-se do
passado que não existiu e as promessas que não foram cumpridas, os óculos
escuros escondiam a dor que escorria de seus olhos.
Estacionou
na pequena lanchonete com ar texano, os lábios secos, o rosto pálido, a vida
doendo em sua pele quente. Refrescou-se na pia do banheiro, maquiou a face, contornou
os olhos com o preto de costume jurando não o borrar com lágrimas, pintou
também os lábios em vermelho ardente, prometeu não deixar mais nada doer, por
mais que naquele segundo tudo doesse por inteiro em seu corpo. Voltou para o
carro.
PARTE VI
A
estrada longa sumindo no infinito, um vazio imenso no deserto, mas não dentro
dela. A cabeça a toda em sincronia com o coração, pensamentos soltos,
lembranças voando por dentro do carro. Como quando ele desceu do carro e disse
que não iria mais seguir viagem, não aguentava, era demais para ele, não
compartilharia daquele medo, daquela necessidade de fugir da realidade. E
quando disse que gostava de sua realidade inventada, que a amaria para sempre
mesmo que tudo não passasse de um sonho.
Sabia
que mais dia ou menos dia ele desistiria, sabia que aguentaria, seguiria sem
ele, mas não queria, pois o amava, ela o amava. Mas gritou enquanto ele
caminhava pelo acostamento:
- Eu
vou seguir em frente com ou sem você!
A pergunta
ficou no ar durante dois ou três meses: Se seguiu em frente, porque ainda
olhava tanto para traz?
Ali,
diante aquele momento sublime ao ver a cidade ela conseguiu responder: Nunca
seguiu em frente, apenas fugiu, voltar era seguir em frente. Ela estava voltando.